terça-feira, 17 de janeiro de 2012

Nesta vida não vamos a nenhum lugar, e sem pressa alguma; caminha-se somente, um passo de cada vez, para a morte (Isabel Allende)


Assassinatos na Academia Brasileira de Letras, de Jô Soares (Companhia das Letras, 2005, 252 páginas) não empolga, chegada a metade da leitura. Como diz o próprio título, trata-se do assassinato de imortais em condições misteriosas, e todas as nuances da investigação feita pelo policial Machado Machado, que além de sagaz e muito bem relacionado, também manja muito de literatura. Até agora, morreram dois acadêmicos e o capanga de um deles. Prossigamos, pois, nesta empreitada.

O sonho: estou na Beneficência Portuguesa, em pleno canal dois, à procura de marcar uma consulta com um nefrologista. O local está cheio de gente e chamo a atendente da Recepção pelo nome, que leio claramente no crachá. Não marco a consulta e saio a pé. Na primeira esquina vejo uma pequena multidão: um cavalo lindo, branco, está de pé dentro do canal, e a água rasa mal lhe cobre as patas. Alguns homens em uma máquina estão iniciando o trabalho de resgate do animal, que aparentemente está tranquilo. A imagem, apesar do conflito da situação, é de serenidade e paciência. Alguns homens que observam o resgate estão trajados à moda antiga, de calças, suspensórios e camisetas brancas. Um deles usa chapéu. Me sinto feliz por estar em Santos, e retomo minha caminhada.

O bravo poema do professor e sindicalista Sílvio Prado, de Taubaté, sobre a invasão e desapropriação da área onde vivem os moradores do Pinheirinho, em São José dos Campos:


AO SOLDADO INVASOR DO PINHEIRINHO

Você que se acha preparado
e já recebeu instruções para invadir
e fazer a desocupação do Pinheirinho,
mesmo estando agora
sob as ordens de um tenente ou coronel
rigoroso nas suas determinações,
pare e pense o que significa o enfrentamento
com alguns milhares de trabalhadores
enraivecidos e sedentos de justiça,
armas rústicas em suas mãos, porém bem alojados no interior
de um terreno que só eles conhecem tão bem.

Pense no que significa entrar num terreno minado
onde milhares de bolinhas de gude
atiradas por centenas de estilingues
vão se chocar com seus escudos
ou, num momento de descuido,
com a fragilidade de sua testa ou têmporas.

Pense no perigo de um coquetel Molotov
explodindo perto de seu peito,
fazendo descer a gasolina por sua farda
e, atrás dela, o rastro do fogo
já consumindo sua pele
e de nada adiantando o seu grito de socorro
aos companheiros de pelotão,
também atordoados
por outros coquetéis ou pela fuzilaria
de fogos de artifício
e, quem sabe, pelo calor de uma barricada
de pneus ardendo próxima de seus olhos.

Saiba, policial militar, a batalha do Pinheirinho
não se parecerá com nenhuma das outras
batalhas que seu pelotão travou
para expulsar gente pobre de terras ou prédios
ocupados. Não se parecerá jamais
com as batalhas desiguais
que travadas com professores
na Avenida Paulista
ou nas imediações do Palácio dos Bandeirantes
onde borrachadas gritaram nas costas de educadores
e spray pimenta e gás lacrimogêneo
deixaram gente tonta e quase cega.

Nem de longe se parecerá
com batalhas travadas em portas de fábricas
a mando de patrões que não suportam
a justa reivindicação dos trabalhadores.

Essa batalha será única
e travada por milhares de trabalhadores
que há dez anos se preparam
para lutá-la e assim garantir de vez
o seu direito a moradia.

Você que se apresentou
pontualmente ao seu comandante,
com a farda limpa, os sapatos bem engraxados,
cabelos e barba tratados como se deve,
enfim, um soldado exemplar
e merecedor de citação especial
no relatório de seu comando,
quando botar os pés sobre o chão
daquele bairro miserável e sedento de fazer justiça,
por mais poderosas que sejam suas armas
e por melhor que tenha sido
seu rotineiro treinamento,
você logo perceberá a loucura
que seu comando fez
ao colocar soldados que ganham salários
miseráveis para combater e violentar
direitos de cidadãos também tão miseráveis.

Saiba que dentro do Pinheirinho
você vai encontrar homens, mulheres
e muitos jovens que tem só a perder
uma casinha rústica construída com imenso
sacrifício em duros mutirões de final de semana.

Esses homens, mulheres e jovens,
a maioria deles construíram suas casas
pensando em fazer delas
o que deve ser feito com toda casa
construída por um trabalhador,
ou seja, apenas um local de moradia,
espaço físico e expressão de um lar.

Porém, já que interesses estranhos a eles
impedem que esse espaço físico seja
um local de moradia ou expressão de um lar, que ele
então seja transformado numa coisa impossível
e humanamente inaceitável:
o seu derradeiro tumulo
na dura luta por justiça num país desigual.

Por isso, fique atento soldado
da tropa de choque que arrogantemente
se propõe a retirar do Pinheirinho
cerca de nove mil brasileiros que
sob a sordidez de uma trama política perderam
o direito a moradia.

Devido a dramaticidade da situação
criada por interesses de gente poderosa,
esses nove mil trabalhadores
não poderão recebê-lo com flores
e nem lhe dirão bom dia
quando o primeiro soldado de seu batalhão
atravessar o portão ou o arame farpado que cerca
mais de 1 milhão de metros quadrados
dessa ocupação.

Prepare-se,
pois em muitos lugares
o chão vai engolir seus pés e até suas pernas
e o fogo dos molotovs de imediato subirá
devorando sua camisa até sugar com
tanta quentura a firmeza de sua pele.

Fique atento e empunhe com firmeza
seu escudo militarmente bem preparado
pois uma lança rústica de um simples bambu
poderá vencê-lo, como tantas vezes
um armamento de bambu de um guerrilheiro
vietnamita venceu invejáveis artefatos tecnológicos
do poderoso exercito norte americano.

Você, tão preparado para não ter medo
vai sentir o medo engolindo sua coragem
e se achando ridículo por colocar em seu
currículo mais outra estrela
de um outro trabalho sujo
que poderá dessa vez ser tão mal sucedido.

Prepare-se muito bem,
policial militar, incapaz de questionar
ordens vindas de seu comando
mesmo que essas ordens exijam a pancadaria
em pais de família indefesos,
tiros certeiros de bala de borracha
em trabalhador indignado,
desconcertantes jatos d’água
em multidão enfurecida
além de prisão por desacato de todo cidadão
que amparado num direito constitucional
questionou atitudes e ordens policiais.

Enfim, você não estará combatendo bandidos
amedrontados em ruelas de bairros miseráveis,
gente moralmente destruída
e sem nenhum sentido de organização militar
e política.

Os que estarão a sua frente empunhando
rústicas armas são aqueles homens simples e anônimos
que no correr da semana dão duro no trampo
de pedreiro, catam recicláveis pela cidade,
fazem bico de segurança, capinam terrenos,
se arrebentam trabalhando de ajudantes na construção civil;

São também domésticas e estudantes de escola pública,
vigias, flanelinhas, babás de crianças ricas,
diaristas...gente muito parecida com você.

São todos eles gente digna
que muitas vezes por serem negros e mulatos
ou ostentarem aparência incorrigível de gente pobre
foram em inúmeras blitz
rispidamente abordados e impiedosamente
revistados por homens tão pobres como eles,
mas que dentro de uma farda
e no interior de uma corporação militar
aprenderam a olhar esse tipo de gente
naturalmente como suspeita de todo crime.

Por não serem bandidos,
mas gente digna
e tendo ainda alma para sonhos de justiça e igualdade,
eles agora se transformaram
num exercito particularíssimo e inusitado
lembrando alguma coisa de Canudos
e de muitas outras lutas por justiça
e igualdade.

Portanto, cuidado soldado.
Essa gente pobre, feia e mal cuidada
traz motivos de sobra pra lutar desesperadamente
mesmo que sua luta resulte na crueldade
de mortes brutais, tanto de quem se propõe
tirá-los do sonho necessário de uma casa
ou a morte deles próprios.

Quando pisar no solo do Pinheirinho,
lembre-se: gente tão simples e pobre como você
não poderá tratá-lo jamais como um igual
mas como a encarnação real do verdadeiro
inimigo, essa gente rica e poderosa
que inventa guerras de todo tipo
e inventa também divisões e antagonismos
na massa imensa de homens pobres
e depois precisa de batalhões de soldados e policiais
especializados na triste arte de fazer trabalho sujo.

Quando pisar no solo do Pinheirinho,
pense nas vidas que você pode tirar
e também na vida que você pode perder.
Pense na família que pode perder um membro
ou ficar mutilada. Pense na sua mutilação física
ou também moral
carregando pelo resto da vida
uma dor que não tem cura
um remorso sem tamanho
e a tristeza de outra vez
não ter tido peito para não acatar
mais outra ordem estúpida.

Pense tudo isso, policial militar,
se é que dentro de sua corporação
e no interior de sua farda
ainda é possível algum tipo de pensamento
que não leve à criminalização de pessoas
pobres tão semelhantes a você.

Pense, policial militar, pense
e resgate em você essa coisa maravilhosa
que é ser solidário com os indefesos e injustiçados
que certas conjunturas políticas
acabam transformando em guerreiros da justiça.

Gente que necessita apenas de pão, escola, moradia,
Trabalho e jamais da letalidade das balas de borracha,
do ardume do spray pimenta
e do lacrimogêneo,
da pancadaria grosseira dos cassetetes,
do fogo em suas casas e barracos
e do som atordoante e aterrorizador
de helicópteros voando durante horas
sobre suas cabeças...

Sempre pão, escola, moradia, trabalho
é o que eles, tanto quanto você, precisam
e jamais de truculências, pancadarias e injustiças
financiadas pelo Estado.

Silvio Prado
Diretor estadual da Apeoesp

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