terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

Quantas horas ocupamos a complicar as vidas dos outros, em vez de simplificarmos a nossa? (Inês Pedrosa)

Um domingo chuvoso e frio, ideal para passar o tempo às voltas com ruminações lítero-intelectuais. No mercado com Simone para comprar o frango assado e o guaraná de 2 litros, saquei a Folha. Comprar o jornal de domingo é uma idéia que me assola já há algumas semanas, que hoje pus em prática. Ou por inclinação pessoal ou porque o jornal está extraordinariamente bom hoje, a impressão que tenho é que o investimento de cinco reais valeu a pena. Artigos antológicos, que mais tarde comento. Na minha frente no caixa, um típico turista paulistano vai passando suas compras. Duas garrafas de vinho, queijo coalho para assar e outros tipos de formaggio, água mineral com e sem gás, carvão, duas peças de picanha –sessenta reais cada uma- e lingüiça apimentada. Total da compra: trezentos e cinqüenta e cinco reais, que ele pagou com seu cartão American Express. Atrás de mim, uma dupla de senhoras fantasiadas de evangélicas pobres carregam um pacote de macarrão Adria. Ficamos no meio, eu e Simone, com nosso refrigerante, nosso frango assado, nosso chocolate granulado e a Folha. A fila do supermercado mostra que, sim, nada mudou no quadro da desigualdade social brasileira, apesar de o governo insistir em dizer o contrário.

Ah, sim, os artigos antológicos da Folha de hoje. Vamos lá: Eliane Cantanhêde, “Pequenas Grandes Coisas”, sobre o episódio envolvendo o estudante Vitor Soares Cunha, que intercedeu por um mendigo que estava sendo covardemente espancado por um grupo de jovens robustos e bem vestidos em uma rua do Rio de Janeiro, que largaram o indigente a passaram a espancar o próprio Vitor, mesmo quando este já estava desacordado em face das pancadas ininterruptas recebidas. “Depois de horas de cirurgias, placas de titânio na testa e no céu da boca, 63 pinos para recompor os ossos da face e ainda com o risco de perder os movimentos do olho esquerdo, Vitor saiu com sua mãe do hospital e disse, com uma simplicidade atordoante, que não sentia heróico e que faria tudo novamente. Não podemos nem devemos desperdiçar episódios, personagens e frases assim, fundamentais para reforçar que, além do Estado, dos poderosos e dos ídolos, cada um de nós tem de dar o exemplo e ter responsabilidade diante do país e do outro. Um delas, possivelmente a mais nobre, é a de criar os filhos para o bem”. Sobre este assunto, conversei com os meninos durante o almoço. Enquanto Bruno se absteve de participar da discussão, Leonardo surpreendeu e aceitou o convite para o debate, colocando-o sua opinião com a propriedade de uma criança ainda não totalmente corrompida pelo sistema. Não é o caso, pelo que parece, do seu adolescente irmão mais velho, que preferiu fugir de qualquer posicionamento, ainda que equivocado. A ambos meu mais incondicional amor, e a certeza que é necessário provocar este tipo de debate à mesa, com mais freqüência.

Carlos Heitor Cony, “Hay Gobierno?”, quase na íntegra: “É uma das piadas mais conhecidas: o náufrago chega a uma ilha, é recebido por alguns habitantes locais e faz a primeira e única pergunta que lhe competia: “Hay gobierno acá?” Respondem que sim, há governo. O espanhol, ofegante, declara seus princípios: “Entonces, soy contra!” Se o mesmo náufrago chegasse ao Brasil neste fevereiro de tanto calor, provavelmente receberia uma resposta diferente. Não, não há governo. Ninguém, nem mesmo um náufrago, precisa ser contra. Temos uma presidente digna, capaz, honesta, com popularidade em alta. Temos uma multidão de ministros, ministros até demais. Somando os ministros demitidos com aqueles que ainda não o foram, dá para encher um Costa Concordia, todos sobreviventes e disponíveis para novos encargos de sacrifício cívico. Em termos de formalidade, tudo está nos seus lugares e modos.  O ministro da Fazenda reconhece que a Casa da Moeda é importante. Nomeia para geri-la uma pessoa que ele não conhece nem sabe quem a indicou. Em país assim, nenhum náufrago pode ser contra, pelo contrário, todos são a favor. Aeroportos do país ameaçam privatizados no expediente da manhã, voltam a ser do governo no expediente da tarde. Todos os dias, as TVs oficiais mostram as cerimônias de inauguração e de assinatura de novas medidas ou posse de novas autoridades. Para ser do contra, o náufrago terá de nadar mais um pouco, ir para a Síria ou o Haiti, que é mais perto.” Tosca continua contando com minha simpatia. Credito seus tropeções ao famigerado argumento da “herança maldita”.

Hélio Schwartsman, “Sobre a Alma”: “É quase um bálsamo ver uma autoridade pública assumindo claramente posição pró-aborto, como fez a nova Ministra das Mulheres, Eleonora Menicucci. O argumento central dos antiabortistas é a de que a vida tem início na concepção e deve desde então ser protegida. Para haver coerência nesta posição é necessário introduzir um dogma de fé, o de que o homem é composto de corpo e alma, que a Igreja Católica afirma instilar-se no novo ser no momento mesmo da concepção. Sem isso, a vida humana não teria diferença alguma da dos animais e o cruzamento dos gametas não teria nada de especial. O problema é que ninguém jamais demonstrou que a alma existe e muito menos que se instala no embrião. Na verdade, é difícil conciliar a noção de alma com o que sabemos de biologia. Um bom exemplo é o fenômeno da gemelaridade. Gêmeos monozigóticos se formam entre um e quatorze dias depois da fertilização. A alma, é claro, já estava lá. Cabem, assim, algumas perguntas, Ela também se divide, ou outras almas surgem para animar os demais irmãos? De onde elas vêm? Quem fica com a “original”? Se um irmão peca, manda o outro para o inferno? Ou a alma boa prevalece sobre a má, carregando para o paraíso uma ovelha negra? Se é a noção de alma que sustenta teologicamente a oposição ao aborto, no plano biológico ela só causa confusão. Façam suas escolhas. Eu fico com a biologia”. Aqui não dá para provocar os meninos. A discussão iria fundo demais, e eu acabaria me afogando.

Para encerrar com os artigos, Ferreira Gullar na Ilustrada, “Um Sonho Que Acabou”, sobre suas relações com Cuba: “Como entender a atitude da presidente Dilma Rousseff que, em recente visita a Cuba, forçada a pronunciar-se sobre a violação aos direitos humanos, preferiu criticar a manutenção pelos americanos de prisioneiros na Base Aérea de Guantánamo, o que me fez lembrar o seguinte: um norte-americano, em visita ao metrô de Moscou, que, segundo os soviéticos, não atrasava nunca nem um segundo sequer, observou que o trem estava atrasado mais de três minutos. O guia retrucou: ‘E vocês, que perseguem os negros?’. A verdade é que nem eu nem a Dilma nem nenhum defensor do regime cubano desejaria viver num país de onde não se pode sair sem a permissão do governo”. Brilhante, esclarecedor e algo definitivo, como sói ser. Quem conhece um pouco a história de Gullar sabe a dimensão que toma um artigo como este.

Meu reino por pés desinchados e que me permitam uma caminhada solitária pelas ruas do Morro-Grande, entre uma chuva e outra.

Na intenet, botei lá “Academia de Letras de Campos do Jordão” e a resposta foi o vídeo da posse de Maria Lúcia López, em 2006. Arakaki Masakazu, Pedro Paulo Filho e Celso Marcondes Ferreira em ótima forma e um depoimento de um já moribundo Paulo Dantas. Bons tempos, o de nossa entidade, em uma época de esperanças renovadas.

Ainda na Folha, no caderno Cotidiano 2, em matéria que trata da invasão do Shopping Higienópolis por um grupo que protestava contra o racismo. Chamou a atenção o depoimento de uma cliente do estabelecimento, de 58 anos, arquiteta e de sobrenome italiano: “Achei ridículo. Afinal de contas, esse negócio de racismo onde é que está? Você viu a quantidade de seguranças negros, de empregados?” Desisti de ler o jornal e fui procurar futebol na TV.

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