terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

O homem não se transfigura senão pelas palavras (Manoel de Barros)

O ANO DE 1993, José Saramago, excertos:

Início: As pessoas estão sentadas numa paisagem de Dalí com as sombras muito recortadas por causa de um sol que diremos parado

Porém não devemos esquecer que o mar é o princípio e o fim de todas as coisas

Quando o mar cobrir os continentes gastos e a terra rebrilhar no espaço como um espelho gelado

Agora os homens apenas procuram o mar para se lamentarem diante da grande voz das ondas

Que em verdade não excluem uma maré renovada e uma coragem à medida do tempo que passou desde a primeira de todas as mortes

À mais grave ocupação de todas que é a de pensar ninguém dá atenção

O ocupante

Porque onde a terra estiver mais fresca ali estará agitando-se devagar o oculto

Nenhum lugar é suficientemente belo na terra para que doutro lugar nos desloquemos a ele

De dia uma enorme ausência guarda as portas da cidade

E as ruas têm aquele excesso de silêncio que há no que foi habitado e agora não

Uma das pessoas vai riscando no chão uns traços enigmáticos que tanto podem ser um retrato como uma declaração de amor ou a palavra que faltasse inventar

Quando o sol nasceu e a horda saiu para o ar livre e para o mundo aprisionado
O homem sentou-se no chão dobrado como um feto
E prometeu morrer sem resistência se a lepra que lhe nascera durante a noite não fosse nunca descoberta pelos companheiros que talvez ainda soubessem ler

Uma labareda que vinha no braço levantado e que era a própria mão ardendo da luz do sol roubada

O próprio vocabulário sofrera transformações e haviam sido esquecidas as palavras que exprimiam a indignação e a cólera

Todas as calamidades haviam caído já no ponto de se falar da morte com esperança

Assim a noite passou sobre esta paz que não conhecia pesadelos

Estão agora sobre nós as gaivotas pairando e deixam pender um pouco a cabeça para melhor nos fitarem e decidirem quem somos

O mundo durante o minuto seguinte vai ficar rubro cereja e os homens e as mulheres parecem flutuar no interior de um forno e são imortais

É este o preço da paz quando o amanhecer vem perto e o medo de morrer é esse mais humano de não viver bastante

Feito o que desenharam o retrato de si próprios segurando uns toscos paus e na transparência do peito limitado por dois riscos laterais marcaram o lugar que deve ocupar um coração vivo

Para que verdadeiramente seja um trabalho nosso e comecem a ser possíveis todas as coisas que ninguém prometeu aos homens mas que não poderão existir sem eles

E pelos campos fora arderam fogueiras que fizeram da terra vista do espaço um outro céu estrelado

Uma vez mais a ida e o regresso e agora a esperada fadiga entre duas altas montanhas num chão de pedra onde a sombra de repente fica enquanto o corpo se dissolve no ar

Assim olhar apartado a própria sombra com olhos invisíveis e sorrir disso enquanto as pessoas perplexas procuram onde nada está

Final: Consoante se conclui de nada haver debaixo da sombra que a criança levanta como uma pele esfolada.

Ou muito me engano –e me engano todos os dias- ou estamos aqui a falar, pelos caminhos que José nos abre, da Primavera Árabe. Lembro-me também de uma entrevista de Pilar ao Diário de Notícias (ou terá sido ao Público?) em que ela dizia que José havia previsto os protestos que redundaram na queda de ditadores pelo povo. Pode ser.

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