domingo, 5 de fevereiro de 2012

Falta-nos um interlocutor desinteressado, alguém que não nos sirva, que não nos utilize, que nos ensine a sair do nosso invólucro produtivo e a entender a gratuita e caótica beleza do mundo (Inês Pedrosa)

Três dias de muitíssimas dores. O latejamento no pé direito que, por vezes, subia até às proximidades da virilha, vindo a gelar as mãos, ferver a cabeça e acelerar o coração. Remédios -um atrás do outro, de hora em hora. Falta ao trabalho, coisa que detesto. Febre, diarreia, ânsias. A coloração escura da química a tingir de preocupação a urina e todos os líquidos que o organismo excreta. Isto foi na quinta. No sábado, foi melhor: deixei de praticamente me arrastar e passei a mancar acentuadamente, pendendo para o lado da dor e não da fome, como disse no poema. Guardei muitos gritos de dor. Num fim de tarde radioso, onde até seria um pecado a gente permanecer em casa, fomos ao sorvete do Mercado. Impossível estacionar bem na Abernéssia, mesmo aos sábados à tarde. Hoje, domingo, uma espécie de re-entusiasmo da vida.

Terminei anteontem, durante meu período de horizontalidade, a leitura de Objecto Quase, a coletânea de contos de José Saramago. Apesar da estranheza que é ler meu romancista preferido (ok, confesso, sou mesmo tiete do velho, assumo a condição e as consequencias) escrevendo textos curtos, concluo que se trata de mais um grande livro. Contos que nada deixam a desejar aos grandes latino-americanos do gênero -incluindo Guimarães Rosa. Eu já havia falado aqui de textos como Refluxo e Coisas, todos muito bons, mas o Centauro, em especial, é de um lirismo incomum, de uma beleza nova a gerar, no leitor, incredulidade, compaixão e até mesmo algum sofrimento. Novos retratos a mostrar de forma repetida o inexplicável flagelo que habita a condição humana. 

Comecei Abdias, do mineiro Cyro dos Anjos, o relato de um professor quarentão, pai de três filhos, bem casado e resolvido, que acaba por se envolver com uma de suas alunas adolescentes. Chego a quase metade da leitura, quase gostando. 

E Pedra Bonita, do Zé Lins, que fica no carro para ler enquanto me submeto aos momentos diários de espera. Só pela apresentação do Buarque de Hollanda (será o Sergio ou o Aurélio?), já valeu. Incrível como, em menos de vinte páginas, o autor já nos apresenta personagens tão marcantes e caricatos: o padre miserável e idealista que passa a mendigar em outras paróquias para manter a sua funcionando, seu ajudante semi-analfabeto e orgulhoso de suas funções, as irmãs carolas, a inimizade entre o Coronel e o Major, a severa zeladora da igreja... Vida longa, também, a José Lins do Rego -que, além de grande escritor, possui ainda o privilégio de ser paraibano.      

E o Canto 1 da Divina Comédia, em uma publicação excelente da Edições de Ouro, com apresentação de Otto Maria Carpeaux e tradução de Xavier Pinheiro (será o mesmo que dá nome a uma rua da Encruzilhada, travessa da Conselheiro Nébias?). Se não me engano, o ano da publicação (nem me lembro das aulas de algarismos romanos) é 1967. Segundo Bruno, que transita com certa tranquilidade no mundo da matemática, é sessenta e sete, mesmo. Satisfaçãozinha tola.

Na TV Escola, um excelente programa sobre a vida e a obra de Lygia Fagundes Telles, incluindo trechos de sua entrevista ao Roda Viva e de sua posse na ABL, se não me engano, em 1985. Ao final, ganha toda a tela seu imenso sorriso, num apelo irresistível, irrecusável convite: "Não deixem que eu morra" -referindo-se, claro, à sua obra.

Pela janela do Quarto-Verde observo que lá longe, para os lados de Minas, a branca cordilheira de nuvens vai perdendo sua luminosidade, o vento vai ganhando hálitos mais frescos e a noite, triunfante, se aproxima do mundo para exercer seu reinado. 

Da carta de Lucia Cardoso, em agradecimento ao envio do Sandálias Paternas: "Um abraço, nordestino como seu pai". Coisas gostosas desta vida, por vezes, desprezível.

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