segunda-feira, 2 de abril de 2012

Nunca subestime o poder dos livros (Paul Auster)

O velho teve, de súbito, uma sensação aguda de alguma coisa a dilacerar a sua carne. Um dos molossos, finalmente, trespassara-lhe a perna.  Pode ainda safar-se a navalha do bolso, abri-la, enquanto a pele de todo o corpo se transia dum suor espesso e gelado.  Mergulhou a lâmina no cão até o cabo. O feitor ergueu o chicote sobre o camponês. Por fim, tudo se tornara confuso na cabeça do velho: a planície doidejava colunas de poeira, a poeira escondia as hastes secas de trigo, a poeira era um manto soturno sobre a planície; o Picanço tinha espasmos na sua carne lutando com a morte, o soberbo alazão corria como o vento quente pelas moitas da floresta, e, envolvendo tudo, a dor do seu corpo brutalmente magoado. A dor era uma bruma de sofrimento e irresponsabilidade; cego, feria ao acaso, abrindo veias de sangue  e de ira. Deixou de sentir o chicote na sua carne; a mão retalhava, já inconscientemente, o corpo inerte do molosso. Ia ficando lasso, esvaído, confundindo-se com arbustos, ervas dos prados, trigos, carvalhos, manhãs de sol, bois abrindo regos na terra fofa. O Pomar surgia dos pesadelos, radioso de sol e esperanças. Um Pomar livre, de gente livre, e à frente da comunidade os Parras bebiam canadas de vinho. A vida sumia-se com brandura; do fundo da morte, Picanço vinha lamber as mãos duras do velho Parra. Banhava-o por fim uma suavidade de libertação, como se a navalha tivesse furado, para sempre, todos os corpos dos cães e homens raivosos de todo o mundo.
Esta é a passagem da morte do Parra, pai de António e Pencas, o velho camponês que defendia sua terra da ganância dos novos feitores da terra que julgava sua, já nas páginas finais do romance A Noite e a Madrugada. Escrita com maestria singular, serve para ilustrar o estilo do exímio escritor que é Fernando Namora. Existe algo, penso eu, de Graciliano Ramos neste trecho que transcrevo. Até o momento, para mim, a narração da morte da cachorra Baleia, em Vidas Secas, se constituía para mim na mais bela abordagem do momento da morte da literatura. Agora, esta de Namora junta-se à do ilustre alagoano. Que bom que existem as letras escritas, a poesia, os escritores de ontem e de hoje a tornar menos vulgar a vida das pessoas.

Continua a guerra fria entre a presidente Dilma e os militares da reserva do Exército. Desta vez, foi um grupo de reformados que resolveu comemorar o que eles chamam de “Revolução de 1964”, no último dia 31 de março, em um clube militar no Rio de Janeiro. O ato revoltou parte da sociedade civil, que cercou o local e passou a gritar palavras de ordem contra os milicos. No dia seguinte, dez paraquedistas continuaram a comemoração saltando de pára-quedas com faixas alusivas ao Golpe. Vale lembrar que, no ano passado, o governo proibiu qualquer tipo de celebração, civil ou militar, em alusão à data. Com uma vastíssima agenda em branco, os militares da reserva não desistem em sua luta por causar ainda mais desconforto ao governo. Dilma deve precisar, em breve, de apoio popular se quiser dar continuidade ao seu mandato. Diferente de seu antecessor, que tinha o hábito de oferecer cargos no governo aos seus opositores, a presidente tem levado bordoada de muitos lados.

Em meio a mais uma crise no Parlamento, desta vez envolvendo um senador do DEM (Demóstenes Torres) que atuava no Senado a mando de um criminoso, salta aos olhos a frase de Pedro Simon nas páginas amarelas da Veja: “Os bons homens se foram: Ulysses Guimarães, Tancredo Neves, Teotônio Vilela, Miguel Arraes, Mario Covas. Se esse tivessem ficado e outros tivessem morrido, o Brasil seria diferente”.  

Bruno está bem melhor, felizmente.

Ritelisa entra em uma briga danada para arranjar espaço para os escritores do Vale nas próximas edições do Festival Literário da Mantiqueira, em São Francisco Xavier. Conte comigo, digo a ela, na esperança de ser inserido no espaço. Ritaelisa não abre mão de estar no campo de batalha. É como o gato de Deng-Xiaoping: não importa a cor do felino, contanto que ele mate os ratos.

Hora de preparar o artigo para a próxima edição do jornal. Aliás, já está pronto.

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